São João – Para além da mercadoria
Recebemos o texto abaixo do Jonas Duarte, professor doutor do Departamento de História da UFPB, em João Pessoa – PB, texto escrito em 24 de junho de 2008.
São João – Para além da mercadoria.
Marx disse que o capitalismo tem a capacidade de transformar tudo em mercadoria. Essa é a lógica do capital. Ele procurou mostrar como a sociedade inglesa saiu do Antigo Regime para a indústria moderna e, na essência, o que essa faz é a produção de mercadorias. A produção de excedente, de valor de troca.
Infelizmente ou felizmente – sei lá, nesse caso, mais uma vez, Marx tem razão. Na sociedade que vivemos hoje tudo é mercadoria. Tudo é passível de venda, de comércio. Daí o dinheiro ser o verdadeiro Deus dessa sociedade. Vive-se por ele, para ele e em função dele, o dinheiro. Isto é, em função do “equivalente geral” capaz de comprar tudo, de dá toda satisfação ao individuo. O burguês típico não acredita em força sobrenatural nenhuma, apenas na força do dinheiro.
O Deus do capitalismo é o dinheiro, seu filho, a burguesia. Lógico que essa deificação do dinheiro atinge toda sociedade. Ver-se trabalhadores, classe média, lúmpen, intelectuais, artistas e o diabo a quatro, atrás de dinheiro. Tudo vira mercadoria.
É meio chocante, mas inúmeras vezes já ouvimos ou assistimos nos noticiários, o desbaratamento de quadrilhas que traficavam órgãos humanos: rim, coração, córnea, fígado, etc. Tráfico de pessoas já virou trivial. Parece ridículo, mas o futuro, ou a promessa de um bom futuro virou mercadoria, que se compra em qualquer esquina.
Quantas pessoas não vivem vendendo a capacidade de adivinhar o futuro? Dos astrólogos aos pais de santo… A promessa de felicidade humana se comercializa sem nenhum pudor, até mesmo pela televisão. O reino dos céus, ao lado de Jesus Cristo, é uma mercadoria até barata em algumas religiões cristãs. O rigor exigido para se conseguir entrar lá é que, às vezes, é difícil cumprir.
Virou mercadoria massivamente vendida o esporte e a cultura. Aliás, a Indústria do entretenimento é hoje, uma das que mais cresce no mundo. Hoje se diz com naturalidade que só é possível se ter um bom time de futebol se se tiver muito dinheiro, pois o passe (o direito sobre o atleta) do bom atleta é caríssimo e mantê-lo idem. No mundo das artes é igual. Música, teatro, cinema, televisão, circo, artes plásticas, etc, tudo só com muita grana e no geral, só para os ricos.
Como tudo nessa área (do entretenimento/diversão) virou mercadoria, essa é a
regra. O poder público também compra seus pacotes, às vezes caríssimos, para oferecer ao público gratuitamente. Mil razões estão por trás dessas ações governamentais. Sendo as principais: dinheiro, voto e notabilidade/prestígio. Afinal, nessa concepção, o “povo” ainda precisa de pão e circo.
É nessa lógica que se realiza na minha cidade, Campina Grande, o “Maior São João do Mundo”. A idéia é oferecer diversão ao público de todas as classes sociais e idade e em troca se faturar um bom dinheirinho. Aqui se tem um movimento no comércio, durante o São João, igual ao do período natalino. Aliás, o nascimento de Jesus é a melhor mercadoria que o capitalismo produziu em sua história. Em todo Ocidente. E pensar que Jesus, dizem uns religiosos amigos meus, era um sujeito simples, contrário a tudo isso. Contra a exploração humana, base dessa venda de mercadorias. É…, nesses casos não há ideologias, não se respeita ideologias. Veja que com o guerrilheiro comunista, marxista Che Guevara, aconteceu o mesmo.
Transformaram seu rosto e seus dizeres revolucionários em mercadorias baratas e valores triviais encontrados em estampas das mais grosseiras e no peito de pessoas defensoras fiéis do capitalismo ou alheio a qualquer idéia de Guevara ou de Jesus (o Jesus dos meus amigos cristãos), porque tem um Jesus, dos capitalistas, que permite a exploração humana na terra em função de uma punição no reino dos céus que não me entra.
Com o santo João, em Campina, ocorreu o mesmo. É um produto, um pacote de diversão que se vende por toda a cidade. Embora Campina tenha dado essa conotação a festa, ainda na década dos 80, hoje, é praticamente todo Nordeste. São centenas de cidades que vendem o pobre santo.
Mas como diz Marx; nada é absoluto. Nem a mercantilização é absoluta.
Contrariando tudo e a lógica perversa do capital, existe um São João que é festa, pura festa. Há no São João do Nordeste, um movimento anterior e mais forte do que o dirigido unicamente pelo capital em busca de vender suas mercadorias. Existe a negação de toda lógica capitalista. Há uma festa real, verdadeira, de reencontros, de confraternização, de alegria. Que não é religiosa. É humana.
Essa festa é a comemoração da colheita camponesa, que no nosso Sertão, quando há, ocorre por esses dias. Por isso é a festa do milho. A comemoração da colheita é tradição dos “caboclos brabos” nos sertões. Com a forte emigração sertaneja, que ocorre de forma acentuada desde o último quarto do século XIX, nos períodos secos, e o retorno destes, quando da colheita, sempre no mês de junho, se comemora o reencontro de familiares e amigos. Dessa forma virou também, festa de confraternização (maior do que o Natal). E que bom que a lógica mercadológica não acabou com isso. O contrário. Tenho a firme impressão que esse movimento por uma festa de brincadeiras e confraternização cresce, negando a orgia de bandas e bundas num tremelique agonizante e constrangedor, a serviço de empresários que vêem na festa apenas um produto para aumentar seu ativo, muitas vezes, originário no dinheiro público.
No frio da Borborema, na noite de São João, viu-se, em vários recantos, um povo comemorando as chuvas que caíram generosamente esse ano; viram-se pessoas se abraçarem em reencontros emocionantes de paz e aconchego; pessoas beijando seu solo amado, depois de longa ausência; adorando belas espigas de milho como símbolo de nossa riqueza, contrariando os que teimam dizer que o sertão é pobre. Pessoas cantando e dançando forró, tocado por trios, quartetos e quintetos, dos mais singelos aos mais sofisticados. Formaram-se “blocos de arrasto”, como no carnaval de Olinda, improvisados, organizados por pessoas desconhecidas que ao som do forró apenas se abraçavam, cantavam e curtiam a delícia de se viver, mesmo que apenas por um momento, em harmonia, em comunhão, com alegria; de desconhecidos brincarem como velhos e bons amigos. Existe um São João, em todos os recantos e rincões do Sertão que é a força espontânea de um povo em festa, negando categoricamente, o São João mercadoria. Que bom! Que delícia poder viver um encontro entre humanos, sem estranhamentos, sem violência, sem desconfiança, mas comemorando a vida, a bela vida… Viva São João.
Jonas Duarte, numa deliciosa ressaca, em 24 de junho de 2008.