Texto – De currais e forrós
Posted on: 19 de abril de 2009 /
Recebemos o texto abaixo do Jonas Duarte, professor doutor do Departamento de História da UFPB, em João Pessoa – PB, texto escrito durante a última madrugada.
De currais e forrós
Antes, imaginava eu, que essa mania de acordar cedo, ainda madrugada, era resultado de insônias, de problemas, etc. Bobagem! É a força do hábito. Não tem jeito, antes do sol sair meus olhos se abrem e não durmo mais. Por vezes tento por algumas horas que o sono volte, mas não consigo. Digitar algo nessa máquina virou então um costume, uma necessidade para esperar o dia.
Em conversas com amigos e parentes descubro que se trata de uma espécie de epidemia da minha geração, que assim como eu, viveu sua infância e juventude em fazendas, no campo, especialmente no Cariri. Não é, portanto, um desequilíbrio do sono, mas uma força extraordinária do nosso modo de viver na fazenda, no campo, no sítio, chame-se como quiser.
Dormi em rede até os 18 anos. Não sabia e não gostava de dormir em cama. Minha rede, na primeira infância era na sala. Havia uma porta que ligava essa sala ao quarto de papai. Quando, por algum motivo tinha medo (quase sempre de alma), criava coragem pra gritar baixinho por papai ou mamãe e eles carinhosamente me levavam para cama deles, escondido dos irmãos mais velhos que não gozavam e sequer desconfiavam do privilégio e daquela cumplicidade dos dois comigo.
Bem antes do sol nascer papai chamava: ‘Buchudo’ vamos pro curral. Eu já estava de pé ao seu lado para, espantando os mosquitos, irmos tirar leite. Papai tirava o leite eu controlava a saída dos bezerros e tomava um copão de leite com açúcar, saído das tetas de Beleza ou Florada ou Celinha ou qualquer daquelas vacas minhas amigas. Delicioso. Os bezerros me conheciam e ficavam como numa fila esperando serem anunciados os nomes de suas mães.
Quando saía os primeiros raios de sol íamos comer cuscuz com leite. Papai reservava o “Bico da Galinha” pra mim ou pra Menininha (a irmã encostada a mim), porque senão havia briga entre todos os irmãos pelo “Bico da Galinha”, que na realidade é a parte “bicuda” do cuscuz cozido na cuscuzeira de barro.
Depois fui dormir no quarto com os irmãos mais velho e também “ganhei” o oficio de “moer o milho de molho” pra fazer o cuscuz, de madrugada, além de “botar água em casa”, antes do café da manhã. Eu moia a “Primeira Vez”, que era a mais maneira e também colocava água na forma que era menos e de mais perto, da cisterna encostada a casa. Eles iam buscar no barreiro ou na cacimba, a quilômetros.
Damião, o mais velho, quebrava o milho, moia metade da “Terceira Vez” e peneirava. Realmente era injusto pra ele. Os dois, Damião e Teteto colocavam água em casa e iam ajudar a cortar palma. Depois com uma “Forrageira” (máquina de triturar palma) a diesel, se livraram dessa tarefa. Eu ia caçar preá, com os filhos do vaqueiro, nosso cachorro e os dele: Charel e Sabadela. Exatamente como narram os poetas cronistas do nosso sertão: “maguim, mas caçadozim como o diabo”. Pra confirmar a história, o nome do nosso cachorro era Rex.
A vida era simples e boa. Boa não, maravilhosa. Eu continuava a dormir em rede. Certa vez me colocaram para dormir numa cama, caí, quebrei um dente e fiquei “traumatizado”. Voltei à rede, até depois de taludo, passar por um processo de aprendizagem a dormir na cama, embora pra mim, a coisa melhor do mundo
ainda é deitar numa rede.
Como meu irmão Teteto tinha asma, dormia numa cama. Primeiramente numa “Cama de Patente”. Depois, num grande esforço, comprou-se uma “Cama de Acampamento”. Era uma cama de ferro dobrável, azul, com umas molas horizontais. Diziam que aliviaria sua alergia. Que nada, no frio Teteto começava a “piar”. Era uma agonia horrível. Toda casa ficava mobilizada em função da crise de asma. Mamãe não dormia. Levava Teteto ao terraço, dava chás, tudo. Por vezes levava ao médico.
Certa vez ensinaram pra mamãe que o pássaro “Cancão”, um “Anu-mará” puxaria a asma de Teteto e morreria com ela, livrando-o daquele mal. Conseguimos o pássaro e Teteto deixava o resto de sua comida pro pássaro e ainda cuspia na comida que o pobre passarinho comeria. O passarinho, além de belíssimo, cantava que era uma beleza. Eu sofria com o destino traçado para o Cancão, mas compreendia que sua morte seria por uma causa nobre.
Ele se sacrificaria pelo nosso irmão. Um dia o Cancão não cantou no amanhecer. Estava morto. Ficamos todos alegres, Teteto não teria mais asma. Realmente se passaram alguns dias sem aquelas crises, mas foi o
tempo esfriar e voltar com mais força. O sacrificio do pássaro a que todos nós nos apegamos foi em vão.
No nosso quarto havia um rádio, enorme, que levava quatro “elementos”, que depois passaram a denominar de “pilhas”. O rádio era tão importante que os “elementos” faziam parte da lista de feira. O rádio nos servia para ouvir as notícias, o futebol e forró. Pra gente, os homens da casa, futebol e música de forró passaram a ser tão importantes como o cuscuz com leite.
Meus irmãos viraram colecionadores de revistas “Placar”. Guardam até hoje aquelas relíquias. Sabíamos tudo sobre todos os campeonatos estaduais de futebol do Brasil e sobre todos os clubes do futebol brasileiro.
O Treze Futebol Clube virou nossa religião. Pelo Treze eu rezava, fazia promessas e chorava. Naquele período era quem me fazia chorar. Algumas vezes de alegria e muitas de decepção.
Além disso, ouvíamos todos os programas de forró. Quando nos levantávamos, antes do sol, já havia alguma rádio tocando forró e o nosso rádio já estava a todo volume. Damião assobiava todos aqueles sons maravilhosos e “decorava” todas as letras. Elino Julião, Zé Calixto, Messias Holanda, Zé Catraca, Marinês, Abdias, Jackson do Pandeiro, Gordurinha, Ivon Cury, Seu Vává (Genival Lacerda), Os Três do Nordeste e muitos outros. Nossa preferência era Luiz Gonzaga e Trio Nordestino.
Guardávamos uma identidade com Gonzaga, que eu achava que ele era da família. Éramos íntimos dele. ‘Acauã’ e ‘Triste Partida’ eram quase proibidas por serem muito tristes e serem crônicas tão reais de nossas vidas ou de muitos que dela faziam parte. Assum Preto nos fazia chorar com a perversidade humana. Certa vez, Tio Tõe Trovão trouxe para nossa avó, que morava conosco, um presente.
O disco ‘Quadrilhas e Marchinhas’ de Luiz Gonzaga. Aquilo virou um tormento, pois nossa avó Malú não conseguia ouvir as músicas que caía no choro. Quando tentávamos tirar o disco da vitrola para ela não sofrer, ela nos repreendia e ditava: deixa a música tocar. Não ver que estou ouvindo. Outro disco que possuíamos como um diamante era ‘Os meus sucessos com Humberto Teixeira’. ‘Paraíba’, ‘Qui nem jiló’, ‘Juazeiro’, ‘Baião’, ‘Lorota boa’ e outras pérolas daquela coletânea virou audição obrigatória e prazerosa em nossa vitrola automática que tocava seis discos de uma vez.
Além de ouvir, passamos a ir atrás de forró pra dançar. Onde tivesse um batuque de zabumba ou uma sanfona, lá estávamos. Os forrós na casa de Dona Maria de seu Raimundo era “Forró de radiola” e só tinha um disco, o Quadrilhas e Marchinhas. Adorava ‘Fim de Festa’, que só muito mais tarde descobri ser de Zito Borborema.
Por aqueles tempos ganhei uma égua de papai. Totalmente preta, sem qualquer ponto ou mancha de outra cor. Batizei-a lógicamente de Quixaba. Eu e Quixaba passamos a andar léguas atrás de forrós. Quando voltávamos, quase sempre Quixaba me trazia deitado em sua sela. Parecia feliz naquele retorno.
Chegávamos antes do sol ao curral, onde a deixava para o descanso e a alimentação merecida. Quando podia ou conseguia, tomava um copo de leite igual aos da infância, acariciava uma daquelas vacas e cantarolava ainda dançando:
“Menina nova quando entra num torrado
fica de sangue agitado
não se importa com ninguém……
…..Nesse vai e vem, nesse vai e vem, nesse vai e vem.
É um ‘xamego’ da moléstia nesse vai e vem…..”
Viva o Trio Nordestino.
Viva o forró.
Viva o Forró em Vinil.