O sertão e o poeta
Recebemos esse texto do Prof. Jonas Duarte.
As fotos são de Alexandro Gurgel.
“No aniversário de morte de Gonzaga, quando Recife, Crato, Juazeiro, João Pessoa, Petrolina, São Paulo, Exu, Araripe e várias cidades brasileiras prestam homenagem à Gonzaga escrevi isso que segue abaixo. Sentindo a chuva fina que cai sem molhar na Borborema e ouvindo a sanfona de seu Luiz.
Abraço todas e todos.
Jonas Duarte.
Vulgo Zé das Emas ( e das cabras).”
O SERTÃO E O POETA
Campina Grande, 02 de agosto de 2009.
Um dos filmes que me marcaram foi o carteiro e o poeta, de Michael Radford, 1994. Registra a influência política e poética de Neruda, exilado numa ilha do Mediterrâneo, sobre um carteiro com quem tinha contato quase diário. As relações humanas se sobrepõem e percebe-se o crescimento político e humano do carteiro e do poeta no entrelaçamento de vidas naquele isolamento forçado. Na película Neruda sentencia: poesia é metáfora.
O historiador Durval Muniz Albuquerque Júnior, meu conterrâneo, publicou sua tese de doutorado sob o titulo A invenção do Nordeste e outras Artes[1]. Obra impactante. Durval procura mostrar com um texto agradável e inteligente, sob a inspiração de Foucault e Deluse, que o Nordeste foi uma criação cultural. A literatura, a música e as artes em geral construíram, a partir dos anos 20, uma imagem do Nordeste. O Nordeste é uma produção imagética-discursiva. Fruto de dizibilidades e visibilidades estereotipadas da Região. Isso em favor dos interesses conservadores.
O belo texto de Durval, na minha modesta interpretação, comete um equívoco. Como diria a sátira de Tom Zé, tem um defeito de fabricação. Substitui o processo real, objetivo, pelo discurso. Aliás, fenômeno comum nos historiadores pós-modernos. Eu interpreto que há a produção de uma imagem. Há a construção de um discurso, considerando o Nordeste o espaço do atraso e do “problema nacional”. Mas esse discurso é também fruto de uma realidade objetiva, determinada pela lógica do capitalismo tardio e dependente, desenvolvido no Brasil.
Atribuir-se exclusivamente ao mundo subjetivo a criação de um espaço “subdesenvolvido” estar-se isentando o sistema capitalista e sua lógica de produzir desigualdades e concentração.
Na ótica hegeliana, idealista, o mundo subjetivo criaria a realidade concreta, material. Na minha, a realidade objetiva existe anterior ao discurso. Em outras palavras, o Nordeste “atrasado” em relação ao Centro-sul industrializado, existe de fato. Assim como o capitalismo em nível global organiza-se em Centro e Periferia. Um alimentando o outro e vice e versa. Concordo que há um discurso atribuindo o “atraso” do Nordeste a causas naturais, fruto das condições climáticas, da seca, etc. E nesse aspecto, precisa-se salientar como o discurso da classe dominante, do conservadorismo é utilizado, para dourar a pílula da superexploração a qual as massas camponesas e trabalhadoras em geral da região são submetidas por suas oligarquias.
Da forma que Durval expõe parece que a literatura regionalista dos anos 30 cumpriu o papel de desenhar uma imagem do Nordeste. A música de Luiz Gonzaga da segunda metade dos anos 40 e nos anos 50 também teria tido o papel de reforçar a imagem da seca, da pobreza, além do reforço ao saudosismo. Ao espaço imaginário, que de fato nunca houve.
Não! Não é bem assim. Posso falar especialmente da obra gonzagueana. Luiz Gonzaga produziu, sem margem a dúvidas, o maior acervo cultural do chamado Nordeste. Diria que, se há alguma identidade nordestina, o “Lua” é um dos principais responsáveis por sua criação. Mas é preciso dizer que Gonzaga não criou, não cantou o estereotipo a que se refere o historiador. De fato, o que ocorreu e ocorre é o uso da produção artístico-cultural pelos setores dominantes. Nesse aspecto é necessário dizer que a luta de classes também existe na difusão e reprodução das artes e da cultura. Não existe cultura ou produção artística acima das classes. A música de Gonzaga, assim como seu carisma e prestigio foram utilizados pelas classes dominantes para construir a imagem do Nordeste que interessava a eles, aos oligarcas, latifundiários e coronéis. Mas a obra de Gonzaga é muito mais ampla e rica do que a que os poderosos divulgaram. E pode ser ouvida em toda sua totalidade.
Na realidade, o Sertão existe, o sertanejo também e produziu um Nordeste, resultado das relações de produção em que está inserido; em um contexto maior do capitalismo brasileiro. Como diz Hobsbawm é preciso, para entender o microcosmo fazer suas devidas conexões com o macrocosmo. Também a partir de Hobsbawm é possível detectar e compreender os processos históricos em que se forjam, se formam, se criam as tradições.
O sertão nordestino é talvez, um dos espaços mais ricos para ver o entrelaçamento entre o mundo objetivo, real, com suas relações sociais contraditórias, diversas, ricas e sua expressão cultural. Se quisermos, sua expressão musical, que poderíamos, sintetizando, resumir na obra gonzagueana.
Os poetas do sertão nordestino afloram a toda hora. Cantando seus dramas, suas riquezas, suas belezas e tristezas. Como diria Neruda, com suas metáforas.
João Cabral de Melo Neto dizia que a música é medíocre. Não concebia a poesia musicada. Ele era tão radical a esse respeito que sequer ouvia música. Cedeu poucas vezes. Uma delas foi quando se deslocou na Espanha, onde vivia, para assistir seu “Morte e Vida Severina”, musicado por Chico Buarque. E confessou que gostou. Já Ariano Suassuna considera que poesia e música andam juntas, que a poesia já carrega em si, a musicalidade. Concordo com Ariano. E diria mais. A fala nordestina já é música. Já falamos cantando.
Interpreto, embora não entenda nada de música, como poema, o som de uma bela melodia. A música, por si só, fala. Na realidade, sequer precisa da letra para se compreender a narrativa (aliás, música é justamente isso). Colocar letra em música é algo que aparece muitos séculos depois da música. Se compararmos, música e literatura são semelhantes na arte de fazer-nos “viajar”. A melodia cumpre o papel de aflorar sensibilidades, sentimentos, de “construir” paisagens. Dessa forma, determinadas letras só combinam com determinadas melodias, músicas, ritmos.
Entendendo, portanto, que a música tocada ou cantada por Gonzaga é, sobretudo, a representação social do Nordeste, de sua cultura; é a expressão de um povo, de seus costumes, de suas alegrias e tristezas, do seu modo de viver. Gonzaga é a expressão musicada do sertão.
Dentre os diversos poetas do Sertão, um dos que mais identidade tem com aquele universo é Zedantas. Médico pernambucano, atuando profissionalmente no Rio de Janeiro, Zedantas foi à alma sertaneja, completando poeta e musicalmente a obra de Gonzaga. A música de Zedantas é profunda e fácil, como o povo habitante do sertão. Humberto Teixeira também.
E a música de Gonzaga é o “reboliço” sertanejo. É a expressão poética daquelas terras e daquelas gentes. Ao mesmo tempo Luiz Gonzaga sintetiza diversos estilos, apresenta a estética euclidiana do “Cambaio”…… Define paradigmas musicais.
A importância musical de Luiz Gonzaga para a música brasileira assemelha-se a de Jorge Amado à literatura; Dias Gomes ao teatro/novela. O coloco ao lado de Noel, Pixinguinha e outros troncos dessa árvore enorme, de galhas frondosas e infinitas da música brasileira; como, aliás, diz José Ramos Tinhorão.
Hoje, 02 de agosto de 2009, faz 20 anos da morte física de Gonzaga. Lembro bem daquele dia. A imagem que retenho na memória é forte e emblemática do significado de seu Luiz pros sertanejos nordestinos, de todos os recantos.
Havia pouco tempo, a fazenda Paus Branco, vizinha da de papai, tinha sido desapropriada para fins de reforma agrária, e ali, no Cariri Paraibano, entre a caatinga quase virgem, à época, o governo “jogou” cerca de 80 famílias, alocadas em lotes, sem quaisquer infra-estrutura e/ou política pública que os incluísse de forma cidadã no mundo em que vivemos.
Morar ali, a frente das 80 famílias, veio um velho poeta repentista, desses cheios de sabedorias e de histórias belíssimas, além da rima fácil, na ponta da língua. Já idoso, andava sempre acompanhado de um companheiro mais jovem. Participara, nos anos 60, da luta das Ligas Camponesas em Pernambuco. Convivera com Gregório Bezerra, Arraes, Chico Julião e outros grandes daquelas lutas históricas, prenhas de dignidade e glória do campesinato brasileiro. Naquela quarta-feira fria de agosto de 89, no fim da manhã, seu Agostinho bebericava com seu parceiro de caminhadas Zé Satiro, na bodega de papai. O rádio deu a notícia da morte de Gonzaga. Seu Agostinho empinou-se, encheu os olhos de lágrimas, bebeu um trago mais forte e se perguntou em voz alta. Como?! Ligamos a TV e a notícia era dada já mostrando os preparativos do velório e toda a programação de despedida do Lua do Nordeste, que seria realizada de Recife a Exu. As emissoras de rádio passaram a tocar repetitivamente as músicas do Gonzagão. Embora a música se embrenhasse mundo afora, a natureza parecia triste e muda naquele dia.
Almoçamos e quando saía de casa para me dirigir à Campina Grande, onde coordenava uma campanha política já acirrada, mesmo em agosto, pra Presidente, vi seu Agostinho sentado no chão, escorado no tronco da baraúna, que conservamos em frente de nossa casa velha. Chorava e cantava baixinho…. Olhando-me, de baixo, como que abatido por um forte golpe, sua voz apenas gotejava, trêmula e rouca. Resmungou: estou sem forças, sem pernas. Não lembro meus versos, perdi minha poesia. Cadê minha viola?! Com sons de choro e embriaguez, o homem falante calava-se e sofria a dor da perda. Escorava-se na baraúna, símbolo maior daquelas terras, como que pedindo proteção para amenizar as dores da poesia e do poeta….
Vinte anos se passaram. Gonzaga está presente em praticamente toda música de qualidade produzida não só no Nordeste, mas praticamente em todo Brasil. O velho Lua foi “usado” pelos “donos do poder” de todas as formas. Mas sua obra musical é hoje cantada e difundida nos encontros dos diversos movimentos sociais populares Brasil adentro. É inspiração para poetas, compositores de todas as matrizes e estilos musicais brasileiro.
Eu escuto Gonzaga quase diariamente. Encanto-me com as músicas que não fizeram tanto sucesso e são quase desconhecidas do grande público. Algumas delas, sou taxativo, considero entre as melhores. Nesse aniversário de vinte anos sem Gonzaga fisicamente entre nós resolvi escutar uma das minhas preferidas, pouco conhecida, e brindo a vocês que me lêem nessa manhã fria no agosto da Borborema, a letra de 3X4 (Marilú). De Humberto Teixeira e Maria Terezinha; no LP “Aquilo bom”; de 1972; pela RCA. Linda canção, bela poesia no melhor estilo “cambaio/matuto” nordestino. O melhor é o comentário, que não está na letra, quando Luiz, no meio da música diz: “vendo teu instantâneo fico assim, quanto mais te vendo propriamente dita….” É o sertão nordestino puro, com sua gente tal como ela é…. Maravilhosa. Aí a letra.
3X4 (Marilú)
(Humberto Teixeira e Maria Terezinha)
Marilu tu bem me dissestes
Que eu não güento ficar aqui não
Tô morrendo aos tiquin, Marilu
Com saudade lá do meu rincão
Só de olhar teu instantâneo 3×4
Sinto arrocho no meu coração
Se a coisa apertar mais um pouco
Sou capaz de vortar de avião…
Pra ver o meu sertão….
Ver de novo as espigas de milho
Florindo o pendão
Ver a terra molhada de chuva
Cheirar teu cangote
Dançando o baião
E o “resfolêgo” da sanfona??!! O violão, o agogô, chocalho e todo acompanhamento perfeito, dando a harmonia fabulosa que Gonzaga primava tanto em suas canções. Experimente “ver a terra molhada de chuva, cheirar teu cangote dançando baião…” É bom demais….É imortal como diz o hino de Pernambuco….
Viva Gonzagão.
Viva o sertão.
[1] Durval Muniz de Albuquerque Júnior. A Invenção do Nordeste e outras artes. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1999.