Texto – Caldeirão dos mitos
Recebemos esse taxto do Prof. Jonas Duarte
“Conheci Bráulio Tavares nos estádios de futebol. Nos jogos do Treze Futebol Clube. “Conheci” é maneira de dizer. Nunca falei com ele, nunca fomos apresentados. Sequer numa única oportunidade o dirigi a palavra. Entretanto, alguém me apontou. Aquele é Bráulio Tavares. Naquela época ele usava uns cabelos longos aloirados. Ia ao estádio com uma camisa do Treze, listrada de preto e branco na vertical. Passava o jogo super nervoso. Certamente ainda mais nervoso do que eu, se é que é possível. Mais como lembro que eu tinha condições de observá-lo a roer as unhas desesperadamente é porque certamente minha condição emocional estava mais controlada.
Ele parecia um sujeito diferente. Assistia aos jogos sozinho, sem companhia. Coisa estranha e difícil em um estádio. Geralmente, nós pobres mortais, sofredores de arquibancadas, no primeiro lance de grande emoção, mesmo que tenhamos ido só, já criamos afinidades e nos acumpliciamos com os nossos “irmãos de torcida” como se tivéssemos nascidos juntos. Bráulio não. Do início ao fim sofria, roia suas unhas desesperadamente, fumava, pulava e vibrava só. Observando-o a distancia, compreendia que aquele, para ele, era um momento que gostava de curtir consigo mesmo.
Depois Bráulio virou intelectual, escritor, compositor, diretor de teatro – “artista nacional”, como diria Luiz Gonzaga. O perdemos nas arquibancadas torcendo pelo nosso Galo, mas ganhamos o artista campinagrandense em escala nacional. Outro dia o assisti dizendo que era Trezeano e Flamenguista – como Jackson do Pandeiro. Esse também torceu pelo “Tricolor do Arruda”, quando de sua passagem por Recife.
Leio quase sempre a coluna de Bráulio Tavares no Jornal da Paraíba e gosto bastante. Inteligente e sagaz. Na realidade procuro saber onde ele escreveu e sobre o que, para lê-lo. Quase sempre me deleito com suas crônicas.
Destacaria, a titulo de curiosidade para os leitores, sua ótima passagem como o violeiro cego no “Parahyba Mulher Marcho” de Tizuka Yamazaki nos anos 80. Curto com a restrição necessária sua “brincadeira separatista” com outro gigante da poesia nordestina, Ivanildo Vilanova: “Nordeste Independente”.
No entanto, o que mais me marcou em sua obra, hoje gigantesca, é a música “Caldeirão dos Mitos” do disco de Elba Ramalho de 1980. Elba ainda tinha uma voz meio rabequeira parecida as das rezadeiras de novenas que se espalham pelo interior nordestino. Dizem os entendidos em música que a voz de Elba melhorou, ganhou entonação e não sei o que…. Não discuto que ela é dona de uma voz maravilhosa, que adoro. Mas penso que se perdeu um pouco da “brejeirice” nordestina, do timbre meio cangaceiro, meio rezadeira. A voz meio gasguita da Elba do início dos anos 80 é, em minha opinião absolutamente leiga no assunto, perfeita para o conjunto daquela ópera musical. Ela completa a letra revolucionária, incendiária, repleta de Bráulio Tavares, de Ariano Suassuna, de Zédantas, Zé Marcolino, de Djacyr Menezes, até mesmo, talvez, principalmente, de Euclides da Cunha; e dos violeiros geniais do nosso sertão, juntando-se ao fole mágico e maravilhoso de Abdias.
Caldeirão dos Mitos deveria ser cantada e, infelizmente, necessariamente traduzida e explicada, para grande parte dessa juventude alienada, entupida por porcarias musicais, levada a consumir essa tragédia musical que tomou conta e tornou-se hegemônica no cenário nordestino.
Por esses dias assisti o “Pirulito da Ciência” de Tom Zé. Ótimo. Imperdível. Na versão que assisti há depoimentos e análises desse baiano arretado. Em algum momento ele diz algo mais ou menos assim: a melhor maneira de dominar economicamente uma região e/ou um país é através da cultura. A destruição da cultura de um povo é o passo definitivo para sua dominação. Não paro de pensar nisso.
De certo há interesses gananciosos e perniciosos em propagar essa tragédia cultural que comprime; que fecha os espaços para uma produção cultural de qualidade – que seja entretenimento e promoção cultural, educacional. Certamente os interesses obscuros que movem essa indústria de lixo cultural são conscientes do papel que cumprem.
Citando José Martí: Ser culto é a única condição de sermos livres.
Abaixo, a letra de Caldeirão dos Mitos. Escute-a na voz de Elba do disco “Capim do Vale” de 1980, (veja a delícia desse título de disco). Prestem atenção no fole de Abdias.”
Caldeirão dos Mitos – (1980)
(Bráulio Tavares)
Eu vi o céu à meia-noite
Se avermelhando num clarão
Como o incêndio anunciado
No Apocalipse de São João
Porém não era nada disso
Era um corisco, era um lampião.
Eu vi um risco nos espaços;
Era o revôo de um sanhaçu;
Eu vi o dia amanhecendo
No ronco do maracatu;
Não era a lança de São Jorge,
Era o espinho do mandacaru.
Vi um profeta conduzindo
Pros arraias as multidões
Pra construir um chão sagrado
Com espingardas e facões;
Não foi Moisés na Palestina,
Foi Conselheiro andando nos sertões.
Eu vi um som na escadaria
Do re-mi-fa-sol-la-si-do;
Não era o eco das trombetas
De Josué em Jericó;
Era um fole de oito-baixos
A toca numa noite de forró.
Vi um magrelo amarelado
Passando a perna no patrão;
Não foi ninguém na Inglaterra
Nem de Paris nem do Japão;
Era Pedro Malazarte, era João Grlio
E era Canção.
Eu vi um som ao meio-dia
No meio do chão do Ceará;
Não era o coro dos Arcanjos
Nem era a voz de Jeová:
Era uma cascavel, armando
O bote balançando maracá.
Vi uma mão fazer o barro
Um homem forte, um homem nu;
Um homem branco como eu
Um homem preto como tu;
Porém não foi a mão de Deus;
Foi Vitalino de Caruaru.