Texto – Impactos da cultura livre na produção e no consumo
*Link enviado pelo Arlindo.
Texto de André Deak
Fato: as novas gerações não entendem a cópia de arquivos digitais como um ato que contenha qualquer problema ético. Segundo pesquisa do Ipea divulgada em 2012, dois de cada cinco usuários da internet no país podem ser considerados piratas. Seriam, assim, 13,88 milhões de piratas no Brasil. Teríamos mais piratas que a população inteira de Portugal.
Não é uma situação brasileira, apenas. No mundo todo se discute o quanto a pirataria avança, sempre mais e mais, e o quanto ela geraria de perdas para as empresas, produtores, distribuidores. Perdas, na maioria dos casos, calculadas sobre o número de vezes que a música, filme, software ou livro foi baixado online, como se cada download ou venda em camelô significasse uma venda a menos na loja, o que simplesmente não é verdade.
Mas sem entrar neste debate específico, há duas grandes vertentes nesta discussão: de um lado, os que defendem “conscientizar” as novas gerações, utilizando para isso a lei, buscando penas duríssimas em alguns casos, como exemplos, para assim “disciplinar” as populações; os mesmos que veem no compartilhamento digital algo a ser impedido, um problema; de outro, os que enxergam aí uma oportunidade, inclusive comercial, e um novo modelo de consumo e distribuição; os que querem mudar as leis.
Talvez seja possível dividir em três grandes etapas, ou estocadas, as que abalaram alguns grupos de intermediários bem diferentes. Os primeiros a sentirem o impacto da internet – impacto financeiro – foram os jornais, impressos, sobretudo. No início da web, ficou fácil encontrar as informações publicadas nos jornais diariamente sem ter que pagar por isso mais do que a assinatura do plano de internet. Os jornais, com vendas em decadência também por outros motivos, viram no acesso a suas informações online, de maneira gratuita, um dos vilões de sua crise. Há mais de 10 anos os impressos discutem quais são os motivos do problema de seu financiamento e como superá-lo, e chegaram inclusive a assinar uma declaração internacional que impedisse o Google de republicar suas notícias no sistema de busca, alegando que seria uma violação de direito autoral republicar um link para suas notícias. Uma medida que colocava os jornais mais fora da grande rede e que não fez com que, em última instância, os leitores voltassem a buscar notícias pagas. Outro exemplo mais recente foi a Rede Globo, que saiu do Facebook, alegando que a rede social era irrelevante e gerava apenas entre 1% e 2% de seus acessos online, e voltou, cerca de um ano depois. Os jornais deixaram de ser o pedágio entre os leitores e a informação e foram os primeiros a perceber que teriam que mudar neste novo contexto. A resposta sobre qual seria esta mudança ainda é alvo de debates, mas existem alguns novos caminhos abertos.
O segundo impacto veio sobre a indústria da música, dos distribuidores, sobretudo, num momento em que a banda da internet deixava de ser tão estreita. É quando ocorrem os casos do Napster e de todos os outros sites de torrents, arquivos que são quebrados em milhares de partes e compartilhados em cada pedaço simultaneamente entre todos os que estão conectados na rede.
O terceiro impacto seria sobre a indústria de filmes, de conteúdo audiovisual. Não é à toa que a Motion Picture Association of America (MPAA) passou a integrar o consórcio que define as regras da internet (W3C), e que este consórcio discute agora um sistema de proteção de direitos autorais inerente ao código de toda a internet, dentro do HTML5. A MPAA representa seis dos maiores estúdios norte-americanos: Walt Disney Studios Motion Pictures; Paramount Pictures Corporation; Sony Pictures Entertainment Inc.; Twentieth Century Fox Film Corporation; Universal City Studios LLC; and Warner Bros. Entertainment Inc. Um dos grandes pensadores da web, Cory Doctorow, publicou um post dizendo que 2014 poderá ser “o ano em que perdemos a web”7 se houver de fato essa restrição à troca e download de conteúdos. Não se trata apenas de baixar músicas, mas de compartilhar novas ideias. Não fosse a web livre, não existiria nem mesmo a internet, que é feita sobre código aberto.
Pessimismo (ou realismo) à parte, estes três impactos geraram, em cada setor, diferentes e criativos modelos de negócio, em que o grátis é parte fundamental da estrutura de distribuição. Estariam, assim, muito mais alinhados ao que tem sido chamado de Cultura Livre, termo que se popularizou principalmente depois de 2004, quando o advogado Laurence Lessig publicou o livro Free Culture. Lessig é criador de uma licença que flexibiliza o copyright chamada creative commons, que é uma das licenças livres mundialmente mais utilizadas pelos ativistas da cultura livre.
(…) cultura livre é uma visão da cultura baseada na liberdade de distribuir e modificar trabalhos e obras criativas livremente. O movimento da cultura livre envolve a produção e a defesa de diversas formas de conteúdo livre, como o software livre, conhecimento livre, música livre, entre outros. É uma extensão lógica da filosofia do Software Livre aplicada a artefatos culturais. Baseia-se nas 4 liberdades trabalhadas por Richard Stallman, criador do Movimento do Software Livre:
1. A liberdade de executar a obra para qualquer propósito.
2. A liberdade de estudar como a obra funciona, e para isso o acesso ao código-fonte/processo é um pré-requisito básico.
3. A liberdade de redistribuir cópias de modo a beneficiar outras pessoas.
4. A liberdade de aperfeiçoar a obra e liberar suas melhorias.
(SOLNIK, Andre. FOLETTO, Leonardo. 2013)
É a partir destes princípios que muitos produtores e consumidores culturais começaram a retirar os intermediários de seus lugares. Na música, os shows passaram a ser mais interessantes como geradores de renda para os artistas do que a venda de música. Em alguns casos, como no tecnobrega brasileiro, a inovação chegou a incluir inclusive a pirataria: os músicos distribuem suas novas canções antes para os camelôs. Assim, geram e testam a demanda em cada região: quanto mais gente souber deles ali, conhecer suas músicas, mais pessoas estarão dispostas a ir a um show. A banda passar a ser remunerada pelo show e não mais na distribuição da música (LEMOS e CASTRO, 2008). No caso do audiovisual, já existem NetFlix, NetMovies e outros canais em que a distribuição gratuita, ou muito barata, pode também ser um novo paradigma.
Uma crítica comum afirma que apenas autores consagrados, grandes jornais, músicos ou cineastas seriam beneficiados pela livre distribuição, porque seus fãs, mais tarde, pagariam por outros produtos ou serviços. Como ocorreu com a banda Radiohead, que colocou na internet um link para baixar seu novo disco, In Rainbows, desde que quem o fizesse pagasse quanto quisesse, inclusive nada. A banda afirmou que ganhou o mesmo distribuindo assim sua música do que se tivesse feito da maneira tradicional, pagando caro pela distribuição e ficando apenas com parte da renda.
Entretanto, mais e mais artistas, produtores culturais em geral, tem optado pela livre distribuição, com uma lógica simples: quanto mais longe chegar o seu produto, quanto mais ele for distribuído, mais pessoas conhecerão o trabalho. Se as pessoas julgarem que este é um trabalho original, interessante, profissional, poderão contratar estes produtores, artistas, para novos trabalhos. Que serão distribuídos novamente, gerando um ciclo virtuoso.
Neste universo, não será mais possível viver de royalties, de direitos sobre propriedade intelectual. É um universo de criadores, consumidores e fãs, que utilizam livremente conteúdos e reinventam maneiras de gerar renda – algo que não está claro ou bem definido ainda, mas que pode ser visto como oportunidade. De qualquer forma, para todos estes, a cultura e o conhecimento devem ser livres. Será tarefa difícil convencer as novas gerações do contrário.
*Este artigo é uma versão reduzida do publicado no livro da pesquisa Panorama Setorial da Cultura Brasileira 2013/2014. Ele pode ser acessado na íntegra no site www.panoramadacultura.com.br.