Texto – Homenagem a Jackson do Pandeiro, por Abílio Neto
Posted on: 2 de outubro de 2019 /
HOMENAGEM A JACKSON DO PANDEIRO
Texto de Abílio Neto
Fico aqui imaginando Jair Bolsonaro discursando na inauguração de Brasília em 21/04/1960 como se o ato fosse transportado para 2019. Será que conseguiria proferir alguma frase pelo menos parecida com esta que reproduzo?
“Deixemos entregues ao esquecimento e ao juízo da História os que não compreenderam e não amaram esta obra”. (JK)
Agora minha imaginação se volta para o ‘diplomata’ Eduardo Bolsonaro, que fala um inglês do tipo “the book is on the table”, ao compará-lo ao verdadeiro diplomata e poeta Vinícius de Moraes, fluente em cinco idiomas, também falando sobre a Novacap:
“De nada valia o pio das aves de mau agouro da imprensa e de alhures, contra o ímpeto maravilhoso do trabalhador brasileiro, que acorreu de todos os cantos do país, especialmente do Norte, para erguer aquelas estruturas adiante do Tempo…” (Vinícius de Moraes, no LP Brasília – Sinfonia da Alvorada, 1961)
Puxa, onde é que entra Jackson do Pandeiro nessa história? Agora. Jackson não trabalhou na construção de Brasília, mas esteve lá, depois de inaugurada, fazendo um show para “os Silva”, os candangos, que naquele tempo podiam trabalhar em grandes construções e hoje, esta grande família, representa a maior parcela da população carcerária do Brasil. Não estou falando de Lula da Silva. Este, apesar do esforço contrário da juíza Carolina Lebbos, teve direito a uma cela de Estado Maior, já os outros vão para celas de presídios que bem representam o Estado menor que insistimos em ser.
Jackson, que se vivo fosse, completaria 100 anos no dia 31 de Agosto passado, fez em parceria com João do Vale (dois negros maravilhosos, como diria o narrador Luiz Roberto, da TV Globo) uma verdadeira poesia sobre aquilo que contemplou em 1960: “ROJÃO DE BRASÍLIA”. Rojão é um gênero musical, mas ali ele quis se referir ao ritmo arrojado de como eram tocadas aquelas obras da nova capital do país. Um verdadeiro rojão. A música, no entanto, é um lindo baião.
Uma coisa que os pesquisadores não falam de Jackson, cujo nome de registro era José Gomes Filho, é que ele foi um grande sanfoneiro de boca (com a boca fazia até arranjos para suas músicas) e também um ótimo violonista rítmico. Ele tocava violão de uma forma diferente de todo mundo.
Na gravação de “Rojão de Brasília”, feita no final de 1960 e lançada em LP pela gravadora Philips no começo de 1961, Jackson se acompanhou do seu violão, e um estudo que fiz de todas as gravações suas me deram a certeza de que apenas em outra oportunidade ele colocou seu violão em estúdio. Um trecho da letra sobre Brasília diz: “o planalto é tão lindo/ que a gente tem a impressão/ que vê ali bem pertinho/ o céu encostar no chão…”
Vendo que as oportunidades de trabalho eram inúmeras no Planalto Central, naquele tempo, ele deixou um recado aos Silva do Norte/Nordeste, no final da letra: “quem tiver de malas prontas/ pode ir que se dá bem/ leve todos cacarecos/ leve seu xodó também/ este conselho é pros homens/ porque mulher lá não tem”. Cacareco aparece grifada de vermelho aqui no meu corretor de texto, é claro, porque cacareco é coisa velha e muito usada de gente pobre que não tem direito a mobília.
Imenso foi Jackson do Pandeiro! Grande compositor e ótimo cantor. Sua voz não era linda como a de Luiz Gonzaga, mas sua maneira de cantar jamais será imitada. O que lhe faltava em beleza vocal sobrava em ritmo e bossa. Aliás, a bossa nova nordestina começou com Jackson cinco anos antes da outra bossa, a de Tom Jobim e João Gilberto, verdadeiros pilares da grande música brasileira em um grau de maior sofisticação musical. E os dois eram doidinhos por Jackson. Quem não era?
Jackson, quando chegou ao Rio de janeiro, em 1953, já era doido pelo samba e introduziu no começo da década de sessenta, o chamado samba de sanfona. Luiz Gonzaga o criticou, mas foi inútil: ele compôs e gravou vários sambas de indiscutível qualidade e com um ritmo que era só seu. O homem era originalíssimo em tudo.
Quis o destino que Jackson morresse num hospital em Brasília, após uma excursão empreendida pelo país. Ele que era diabético desde os anos 60, morreu aos 62 anos, em 10 de julho de 1982, em decorrência de complicações de embolia pulmonar após sofrer um AVC na cidade. Ele gostava de Brasília e tinha amigos lá. Participou de um show uma semana antes de falecer e no dia seguinte passou mal no aeroporto antes de embarcar para o Rio de Janeiro. Ficou internado na Casa de Saúde Santa Lúcia.
Foi enterrado em 11 de julho de 1982, no Cemitério do Caju, na cidade do Rio de Janeiro, com a presença apenas de músicos e compositores populares dos morros cariocas e nordestinos. Nenhum medalhão da MPB foi se despedir dele. Hoje, seus restos mortais repousam na sua terra natal (Alagoa Grande/PB), não no cemitério da cidade, mas em um memorial preparado para tal fim pelo povo alagoa-grandense.
Campina Grande (Alto Zé Pinheiro, Bodocongó), Recife e as ladeiras de Olinda ainda sentem a falta de Jackson. Nesta última, criou com Sivuca e Hermeto Paschoal, no começo dos anos 50, uma troça de carnaval chamada “O Mundo Pegando Fogo”, prevendo a III Guerra Mundial, que, graças a Deus, ainda não foi decretada.
Jackson tem sido injustiçado no ano do seu centenário. Merecia muito mais do que tenho acompanhado. Até nos títulos de nobreza, o seu foi deixado de lado: falam muito do Rei da Voz (Francisco Alves); do Rei da música romântica (Roberto Carlos); do Rei do Futebol (Pelé); do Rei das pistas (Ayrton Senna); do Rei da Bossa Nova (João Gilberto); do Rei do Baião (Luiz Gonzaga) e até do Rei das Coxinhas (restaurante de Gravatá/PE). Mas do Rei do Ritmo (Jackson do Pandeiro) pouco se divulga, mas ele não deve ser olvidado. Deve sim, ser ouvido porque vive e resiste ao esquecimento nas velhas acomodações feitas para abrigar seus LPs nos lares dos seus milhares de fãs (aqueles que ainda vivem!) espalhados por este Brasil.
Selecionei, além do encantador Rojão de Brasília, o arquivo de A Ordem é Samba, Caso de Polícia e Pisei num Despacho (de Geraldo Pereira), estes dois últimos retirados da minha conta do YouTube para ressaltar o lado sambista do paraibano ou ‘paraíba’, segundo Bolsonaro. Já na clássica “História de Lampião”, também em vídeo, a defesa enfática das mulheres ao abordar o martírio de Maria Bonita, morta e degolada pela polícia alagoana: “mulher não nasceu pra sofrer/ E não devia morrer”.
Por fim, um áudio raro: Jackson cantando, ao vivo, em 1980, o frevo de Carlos Fernando e Alceu Valença, intitulado “Sou Eu O Teu Amor”. A gravação tem a sanfona de Severo, também já falecido, e um coro formado por Anastácia e Cátia de França que se apresentavam com Jackson no Projeto Pixinguinha daquele ano. A música era a que fechava o show e o áudio contém a despedida dos três artistas numa noite de Julho. Foi colocado também no YouTube.
Quando Caruaru tinha carnaval, na década de 60, havia um bloco do bairro Salgado que tinha esse nome: Sou Eu O Teu Amor. O popular Cacho de Coco era quem o comandava: uma pequena orquestra de frevo, umas vinte moças daquelas de ‘corpo levanta defunto’, vestidinhas corretamente com pouca roupa, um barricão fazendo a distribuição gratuita de limão com cachaça e o arrastão dos agradecidos fãs da pinga daquela cidade agrestina, bebendo, frevando e espiando as ‘muié’ fazer o passo da tesoura e passar a sombrinha entre as pernas. O bloco passava veloz feito um raio e a música é a sua história. Ô que saudade danada da Caruaru do passado!
Salve os 100 anos de Jackson do Pandeiro, um artista imortal!
Abílio Neto