Os vários sentidos de Genival Lacerda – Texto de Érico Sátiro
Os vários sentidos de Genival Lacerda – Texto de Érico Sátiro
(texto publicado originalmente na edição nº 47 da revista paraibana Genius)
Quem não conhece Severina Xique-Xique? A pergunta, que também é a frase inicial da música criada pelo compositor João Gonçalves, pode ser facilmente respondida graças ao cantor e compositor paraibano Genival Lacerda (co-autor da canção), falecido no último dia 07 de janeiro, tamanho o sucesso e impacto que causou nacionalmente com essa gravação de 1975, dando início a uma “onda” de canções de duplo sentido interpretadas por vários nomes do forró. O próprio Genival Lacerda, a partir do êxito de “Severina Xique-Xique”, explorou o picante gênero até o final de sua carreira com inúmeras músicas. Mas nem só pelo duplo sentido foi marcada a trajetória de Seu Vavá, muito pelo contrário.
Nascido em 05 de abril de 1931 na cidade de Campina Grande, Genival Lacerda Cavalcante começou sua carreira em 1948, cantando em programas de calouros na sua cidade natal, onde concorreu, entre outros, com uma também iniciante cantora chamada Marinês. Não demorou a se destacar e logo estava participando das rádios Cariri e Borborema. Seguindo os passos do ídolo Jackson do Pandeiro, seu contraparente (1), logo chegou ao Recife, após fazer sucesso em uma festa da rádio Tamandaré em 1953, sendo contratado por esta emissora e conquistando o público pernambucano com seus rojões, sua alegria e modo peculiar de interpretação, não demorando a expandir sua popularidade por todo o nordeste. Em 1956 veio a primeira gravação: um disco de 78 rpm com “Coco de 56” (Genival Lacerda/João Vicente) e “Dance o xaxado” (Genival Lacerda/Manoel Avelino), pelo selo Mocambo, com ritmos e letras tipicamente nordestinos. O crítico Peter Pan, em sua coluna Ronda do disco, do Diário de Pernambuco, escreveu sobre o lançamento: “Genival Lacerda é um bom cantor para ser visto, porque ele sabe aliar a sua interpretação os recursos de gesticulação em palco, o que sempre arranca grandes aplausos do público que o assiste. Em discos, ele defende-se da melhor maneira, não comprometendo o seu cartaz de grande intérprete da música nordestina.” (2) Nessa época, ficou conhecido como Senador do Rojão e Rei da Munganga, devido ao seu estilo cômico nas interpretações, mas ainda sem uso do duplo sentido. Em 1958 gravou seu primeiro LP, um disco de 10 polegadas intitulado Meu Nordeste, deixando claro que Jackson do Pandeiro era uma de suas principais influências – das oito faixas do LP, quatro já tinham feito sucesso com o Rei do Ritmo. “Eu era fã nº 1 dele”, afirmava Genival (3). Nesse período, além de lançar canções de sua própria autoria, gravou em 78 rotações compositores tradicionais da música nordestina como Antônio Barros (“Resposta de Mata Sete”, “Balança o coco”, “Dança do bombo”), Rosil Cavalcanti (Noé Noé, Coco de roda etc.) e Ruy de Moraes e Silva (“Rojão nacional”). Gravou também a primeira interpretação de “Eu vou pra Lua”, sucesso com Ary Lobo (autor da canção em parceria com Luís de França), e “Forró de Zé Lagoa” (Rosil Cavalcanti), gravada posteriormente por Jackson do Pandeiro. Em 1964, após ser aconselhado pelo compositor Ary Barroso, rumou ao Rio de Janeiro, onde recebeu apoio de Jackson e Almira Castilho.
Na Cidade Maravilhosa, Genival Lacerda permaneceu imprimindo seu bom humor em cocos, rojões, marchas e baiões de sua autoria e de nomes como Elino Julião, Gordurinha, Elias Soares e Juarez Santiago, lançados em LPs gravados pela Polydor, Fontana/Philips, Chantecler e Tropicana/CBS. Sua veia cômica rendeu também, em 1970, em parceria com o ator e comediante Lúcio Mauro, o LP As trapalhadas de Cazuza e Seu Barbalho, que apresentava, entre algumas músicas, textos humorísticos de autoria de Luiz Queiroga (4), produtor do disco, que declarou ao Diário de Pernambuco: “Conheci Genival Lacerda cantando na Rádio Tamandaré, no Recife, há 15 anos. O “cabra” era engraçado cantando, mas não dava conta de que guardava um comediante dentro de si. Agora, graças à CBD 5, Genival Lacerda desabrocha seu talento cômico e eu não tenho medo de afirmar que o seu sucesso vai ser enorme e rápido. Quem tiver dúvidas escute as faixas do LP “As trapalhadas de Cazuza”. É o mesmo que Rivelino cobrando uma penalidade máxima”.(6) O parceiro da empreitada, Lúcio Mauro, declarou: “Eu tive a honra de gravar um disco com ele, um LP (…) se houve alguma ajuda de minha parte, eu saí ganhando, por ter feito um disco com Genival Lacerda, que foi e é o maior sucesso musical desse país no gênero dele”.(7)
Outra marca característica do cantor paraibano era a inserção de frases cômicas e recados no início e durante as canções, como em “Eu perdi meu amor” (Juarez Santiago/Genival Lacerda), de 1971:
“Seu Marco Antônio, eu vim passando por aqui que eu tô com uma sede danada. Vim ver sua filha, mas se o senhor quiser, nós troca a bichinha num jegue. Quer não? Quer não?”.
Em “Esse coco é bom” (Genival Lacerda/Genival Santos), também de 1971, o cantor imita um bode falante:
“Bilu, quero beber(…) Benedita, quero beber!”
O período do cantor no Rio de Janeiro (assim como os anos anteriores) resultou em produções criativas, com excelente instrumental e, apesar de pouco conhecidas, de grande importância para a música nordestina. Aliás, o atual público de forró do sudeste, que tomou grande proporção a partir do surgimento do chamado forró universitário, nos anos 90, valoriza bastante essa fase menos conhecida da carreira de Genival Lacerda (até 1974), como explica o DJ e produtor musical Ivan Dias, de São Paulo/SP, criador do portal Forró em Vinil e organizador do Festival Rootstock: “O pessoal daqui cultua bastante o repertório do vinil, tem as festas com discos de vinil, e isso fica mais propício para a gente revisitar os discos mais antigos de Genival Lacerda. Eu, na verdade, gosto muito do Genival, do repertório todo dele”. Ao fim dos seus anos no Rio de Janeiro, Seu Vavá teve a popularidade no nordeste aumentada, construiu um repertório digno dos grandes nomes do forró, chegando também a integrar a caravana do Fino da Roça (8), mas a sonhada fama nacional não apareceu. Faltava um empurrãozinho comercial, que só veio em 1975.
Já residindo novamente em Campina Grande, onde apresentava o programa “Forró do Seu Vavá”, na Rádio Cariri, Genival Lacerda foi procurado pelo compositor João Gonçalves, seu conterrâneo, que lhe ofereceu uma música cuja letra maliciosa trazia a estória de Severina Xique-Xique e Pedro Caroço, que estava “de olho na butique dela”. Após ser rejeitada por Marinês e Messias Holanda, foi aprovada por Genival, que deu uma pequena trabalhada na canção e ganhou a parceria. A música entrou no LP Aqui tem catimberê, que saiu pela Som/Copacabana em 1975 e trazia também outras duas músicas do Senador do Rojão em parceria com João Gonçalves, também de duplo sentido. O sucesso do disco foi praticamente instantâneo, graças a “Severina Xique-Xique”: “Eu vendia 8 mil, 9 mil, 10 mil cópias de cada disco. Em duas semanas já havia vendido 35 mil cópias de “Aqui tem catimberê”. Em pouco tempo chegou a 650 mil”9, contou Genival sobre o disco, que chegou a vender mais de 1 milhão de cópias. A partir daí, a carreira do cantor paraibano deu uma guinada. Apresentou-se por várias semanas consecutivas no programa de Sílvio Santos e também marcou presença em diversos outros programas televisivos de auditório, como os de Chacrinha, Raul Gil e Bolinha. Conquistou o público com suas músicas e também com sua conhecida dança, em que segurava a barriga enquanto balançava o corpo. O sucesso do disco, além de tornar o duplo sentido uma constante na carreira de Genival Lacerda, também fez mudar o enfoque das gravadoras, que passaram a buscar outros nomes que se dedicassem ao gênero. Nesse contexto, forrozeiros como Messias Holanda e Zenilton também alteraram seu repertório e ainda nos anos 70 passaram a se dedicar permanentemente ao estilo. Já nos anos 80, os destaques ficaram por conta de Sandro Becker e Zé Duarte. Este último explica aquele momento: “Os anos 80, até meados dos anos 90, foram o grande auge da música de duplo sentido. Foi um período muito áureo, e a gravadora Copacabana tinha os mais fortes do gênero: eu, Genival Lacerda, Zenilton e Sandro Becker. Éramos os maiores vendedores de discos de duplo sentido”. Sobre Genival Lacerda, Zé Duarte define: “Tenho certeza que entre todos os cantores de forró desse país, até hoje, ninguém fez mais programas de televisão do que Genival. Nem Gonzaga nem ninguém. Foi um grande músico, um humorista. Era um comediante sensacional. Foi o último dos moicanos da safra de Gonzaga. Deixou um grande legado, um grande aprendizado para os forrozeiros que estão chegando”.
Vale lembrar ainda que o forró de duplo sentido não teve início com Genival Lacerda. Antes dele, diversos outros artistas já haviam explorado o gênero, a exemplo de Antônio Barros, Marinês, Trio Nordestino e até mesmo, de forma mais sutil, Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Mas é inegável que foi a partir de “Severina Xique-Xique” que o tema explodiu e se expandiu dentro do forró. O próprio Genival Lacerda acumulou sucessos em sua carreira: “Ás de copas”, “Mungunzá de coco”, “A mulher da cocada “(as 3 em parceria com João Gonçalves), “Rita Caxeado” (Luís Santa Fé/Genival Lacerda), “Radinho de Pilha” (Namd/Graça Gois) e várias outras. O próprio Genival reconheceu a importância de “Severina Xique-Xique”: “Com Severina Xique-Xique eu abri as portas para muitos companheiros. Há uns dez anos atrás a música nordestina só era tocada às 5h da manhã ou então às 18h, mas hoje a coisa está diferente (…). Severina Xique-Xique ficou nove meses nas paradas, o tempo que uma criança fica na barriga de uma senhora”.(10) Sobre as letras apimentadas, Seu Vavá se defendia: “Eu não falo o palavrão…o povo pode pensar, mas eu não falo”. (11)
Apesar de praticamente todos os discos de Genival Lacerda, a partir de 1975, terem como base o duplo sentido, é bom ressaltar que o Rei da Munganga continuou gravando temas diversos em seus lps e cds, ou seja, nem tudo era malícia. No próprio disco que gerou “Severina Xique-Xique”, Seu Vavá gravou “Tenente Bezerra”, de Gordurinha, que falava sobre o cangaço, e “Bahia do Catimberê”, de Orlando Deco e Haroldo Franciso (Kojak do Forró), tratando dos costumes e tradições baianas. Nos discos seguintes gravou, entre outras, “Forró da Gente”, de Onildo Almeida (autor de “Feira de Caruaru”, sucesso com Luiz Gonzaga), “Minha melodia” (Cecéu/Graça Gois), “Eu sou da Paraíba” (Luís Santa Fé/Genival Lacerda) e “Sivuca” (Luís Santa Fé/Genival Lacerda) homenagem ao amigo e sanfoneiro paraíbano. Em 1979, gravou “Mangará”, de Luiz Ramalho, também lançada por Luiz Gonzaga no mesmo ano. Cantou também músicas com críticas sociais como “Promessas não enchem barriga” (Cassiano Costa/Graça Gois, 1981) e “Não palhaço” (Cleonice/Graça Gois, 1983), além de “Celeiro de artistas” (João Gonçalves/Genival Lacerda, 1996), onde reclama da pouca valorização aos artistas de Campina Grande, e “Americanizado” (Jorge de Altinho/Genival Lacerda, 1986), acerca da invasão de termos e expressões estrangeiras no Brasil. Tratou também de uma das maiores paixões do brasileiro, o futebol, em “Seleção brasileira”, gravada no ano da Copa do Mundo de 1982. Futebol, aliás, que por pouco não se tornou o trabalho do cantor: chegou a integrar as categorias de base do Treze de Campina Grande/PB, mas desistiu após saber de um amigo que a sua posição, zagueiro, “não dava muito dinheiro” (12).
Como a irreverência era inerente à música de Genival Lacerda, gravou várias letras cômicas, sem abusar do duplo sentido. Se Luiz Gonzaga usava ovo de codorna para “seu problema resolver” e se Jackson do Pandeiro fazia propaganda do tutano (“que fortalece”) e do xarope de amendoim (“um bom fortificante”), Genival usou “Caldinho de mocotó” para “ficar forte”. “Mate o véio mate”, de 1983, e “Galeguim do zoi azul”, de 1988, ambas em parceria com João Gonçalves, também fizeram sucesso com suas letras engraçadas. Já “Quem dera”, uma das canções mais conhecidas de seu repertório, feita com Nando Cordel, foi lançada em 1984 com uma temática mais romântica, assim como “Paraíba apaixonado”, de 1985, composta em parceria com Cecílio Nena. Em “Alô Bahia” (Durval Vieira/Graça Gois, 1985), o Senador do Rojão homenageou artistas daquele estado como Gilberto Gil, Gal Costa e Caetano Veloso, e a letra de “As estrelas no forró” (João Gonçalves/Genival Lacerda, de 1991), trouxe artistas como Sting, Madonna, Paul McCartney e Frank Sinatra para dentro do ritmo nordestino. “Saudoso Frei Damião” (outra parceria com João Gonçalves), de 2001, ilustra a religiosidade do povo nordestino, exaltando o frade capuchinho. Houve espaço até mesmo para um samba, o “Samba pras moças” (Grazielle/Roque Ferreira, 1997), sucesso na voz de Zeca Pagodinho. Em sua obra, Genival Lacerda também não deixou de dedicar um bom espaço para suas principais influências: gravou os CDs Tributo a Jackson do Pandeiro (1998) e Genival Lacerda canta Luiz Gonzaga (2012), passeando pelo repertório desses ícones do forró.
Outro ponto marcante na carreira de Seu Vavá foi a fidelidade e importância que ele deu ao genuíno ritmo nordestino em toda sua trajetória musical, com muito balanço e divisão ritmica – como bom seguidor da escola de Jackson do Pandeiro. Exigente, Genival Lacerda fazia questão de contar com um instrumental de respeito, chegando a gravar, em um único LP, com os acordeonistas Dominguinhos, Chiquinho do Acordeon e Sivuca, três dos maiores nomes da sanfona brasileira. Gravou também com Oswaldinho, Genaro e, nos primeiros discos, com Martins da Sanfona.
A obra de Genival Lacerda não pode nunca se resumir apenas a seus sucessos de duplo sentido. Tanto os seus primeiros vinte anos de carreira, como o que gravou de forma concomitante aos êxitos de temática apimentada, precisam ser mais divulgados e conhecidos. Apenas uma parte pequena de seus mais de 50 discos gravados (entre 78RPM, compactos, LPs e CDs) encontra-se disponível para audição em plataformas digitais, mas pode-se recorrer ao YouTube para pesquisar e ouvir as músicas menos conhecidas de Genival Lacerda, um dos maiores artistas da música nordestina e brasileira e um dos últimos pertencentes à geração de ouro do forró. Um cantor irreverente, alegre e verdadeiramente nordestino. Um artista de múltiplos sentidos.
(1) José Lacerda, irmão de Genival, foi casado com Severina, irmã de Jackson do Pandeiro. Após o falecimento de José Lacerda, Melquíades (conhecido como Loza), seu irmão, também se casou com Severina.
(2) Diário de Pernambuco, 26/04/1956.
(3) Entrevista ao radialista Osvaldo Travassos, no programa “Paraíba é sucesso”, da Rádio Tabajara, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ubY0_belQjU&t=2812s.
(4) Produtor e compositor, criador da personagem Coronel Ludugero, interpretado por Luiz Jacinto.
(5) Companhia Brasileira de Discos.
(6) Matéria “As trapalhadas de Cazuza – Novo LP de Genival Lacerda. Diário de Pernambuco, 1970, edição 00283.
(7) Depoimento contido no documentário “O Rei da Munganga”, 2008, direção de Carolina Paiva.
(8) Genival Lacerda participou, em seus volumes 2, 3 e 4, da série de Lps intitulada “O Fino da Roça”, ao lado de nomes como Jackson do Pandeiro, Messias Holanda, Zé Calixto, Antônio Barros e Elino Julião. Após o lançamento dos discos, os artistas excursionavam por vários estados, divulgando os discos e realizando apresentações.
(9) Entrevista ao radialista Osvaldo Travassos, no programa “Paraíba é sucesso”, da Rádio Tabajara, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ubY0_belQjU&t=2812s.
(10) Matéria “Genival Lacerda – Um cabra cheio de alegria, talento e malícia. Correio Braziliense, 17/08/1979.
(11) Matéria “Genival Lacerda – Um cabra cheio de alegria, talento e malícia. Correio Braziliense, 17/08/1979.
(12) Entrevista ao radialista Osvaldo Travassos, no programa “Paraíba é sucesso”, da Rádio Tabajara, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ubY0_belQjU&t=2812s.
Fontes consultadas:
Marcelo, Carlos; Rodrigues, Rosualdo. O Fole Roncou! – Uma história do forró. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
Moura, Fernando; Vicente, Antônio. Jackson do Pandeiro: o Rei do Ritmo. São Paulo: ed. 34, 2001.
Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional: arquivos dos periódicos Diário de Pernambuco, Revista do Rádio, Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa e Correio Braziliense.
Documentário “O Rei da Munganga”. Flora Filmes, direção de Carolina Paiva, 2008.
Entrevista ao radialista Osvaldo Travassos, no programa “Paraíba é sucesso”, da Rádio Tabajara, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ubY0_belQjU&t=2812s.
Site do Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB): https://immub.org.
Site Forró em Vinil: https://www.forroemvinil.com.