Veredas de poetas, riachos de poesias

Recebemos o texto abaixo do Jonas Duarte, professor doutor do Departamento de História da UFPB, em João Pessoa – PB, texto escrito durante a última madrugada.

Chove fino em Campina Grande.
Choveu a noite toda.
O frio está uma delicia.
Sem conseguir dormir fecho os olhos e escuto música.
Só tenho vontade de escrever sobre essas músicas, sobre esses poetas, cantadores, que eu adoro.
Socializo abaixo o resultado dessa isônia.
Abraços.
Jonas.

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Veredas de poetas, riachos de poesias.
Jonas Duarte.

Sem dúvidas um dos grandes momentos da música popular brasileira foi o encontro em 1984, em Salvador, no Castro Alves, numa Cantoria, de Elomar, Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai. O encontro virou disco e considero hoje, 25 anos depois, um dos melhores e mais marcantes discos que já ouvi. É magnífico e é histórico. Não poderia ser diferente. A reunião do universo musical apresentado naquela cantoria marcou definitivamente a presença das cantorias de violas, agora estilizadas numa redoma rica de canções populares, no universo musical brasileiro.


Vital, Geraldinho e Xangai da nova leva da mal chamada música regional, trazendo a sonoridade do sertão nordestino em melodias acompanhadas de dedilhados maravilhosos que lembram Pinto do Monteiro, os Irmãos Batistas das ribanceiras do Pajeú pernambucano, que deram craques como Canhoto. Elomar trazendo o sertão profundo, das entranhas de uma sociedade marcada pelo coronelismo, a enxada e o voto… de cabresto; para seguir o clássico de Victor Nunes Leal. As óperas elomarianas marcarão historicamente o repertório musical brasileiro, como o clássico no popular, o erudito no empírico.

Seguir, no sentido histórico e geográfico essa poesia e essa melodia, seria, caso nos encorajasse a uma obra de fôlego, aprofundar sensibilidades e intuições em pesquisas que exigiria perspicácia, certa metodologia investigativa e, sobretudo, tempo, muito tempo. Coisa que não tenho atualmente. Fica a dica para quem se propuser a uma boa tese acadêmica.


Caminho sob a intuição e a sensibilidade matuta, do sertão do Cariri, sob a inspiração de arianos e manelitos; de vitais e xangais, encontrados aos borbotões, Brasil adentro.


Enveredar nessas trilhas sonoras necessariamente exige tracejar sobre a caatinga sertaneja; afastando cardeiros, macambiras e caroás. Precisa-se casquear bem para as passadas, engrossar a couraça; calejar as mãos. Contudo, o importante é amoldar ouvidos, sentidos e razão para deixar ser penetrado pela sonoridade dos sertões. A profusão daqueles sons emitidos como ecos de silêncios, de chocalhos, de trinares de aves miúdas e graúdas; das folhas secas sob o solo fértil rachado, ou do uivo tranqüilo do vento embrenhado na mata caatingueira.


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Como diz a canção de Zédantas e Luiz Gonzaga:

“…. Pra você agüentar meu rojão

é preciso saber requebrar.

Ter molejo nos pés e nas mãos,

ter no corpo o balanço do mar.

Ser que nem carrapeta no chão

e virar folha seca no ar.

Para quando escutar meu Baião

imbalança, imbalança, imbalançá…..

Você tem que viver no sertão

pra na rede aprender embalar,

aprender a bater no pilão,

na peneira aprender peneirar

ver relâmpo nos meio dos trovão

fazer cobra de fogo no ar,

para quando escutar meu Baião

imbalança, imbalança, imbalançá….”[1]

Cartola dizia que o samba saía do coração, temperado pela tristeza. Decifrar de onde vem o “baião”, o “forró” é realmente muito difícil. Certamente não é da melancolia. Talvez da saudade ….. O certo é que a música e a poesia no sertão brotam como a caatinga, respondendo aos primeiros pingos das torrentes inundadoras.


O sertão tem seu som e traduzi-lo em notas musicais, seguindo partituras, sincopes e composições melódicas é o que fizeram e fazem esses sujeitos cantadores da alma mais profunda da natureza e da cultura nacional.


Se nos embrenharmos pela Copaoba paraibana, subindo na direção dos sertões do Cariri encontraremos Taperoá. O Rio, a cidade, o lugar. Há algo especial nessas terras. Algo mágico e humano, natural e socioeconômico, ainda não decifrado pela antropologia, história ou sociologia. Algo a ser investigado com um conteúdo transdisciplinar, que envolva, além das ciências humanas, as ciências naturais, sociais, mas, sobretudo, e principalmente, a “ciência” popular. Ponto de partida para decifrar o enigma poético da Copaoba.

Ariano Suassuna é incompreendido e incompreensível sem essa “ciência” popular nordestina e sem ter tido cravado em sua pele uma cicatriz deixada pela jurema preta ou pela sedução lenta e gradual de um imbu adocicado, ou a magia de uma “relampeada” de janeiro. Darci Ribeiro, Câmara Cascudo, o próprio Mário de Andrade se embelezaram com o sertão, o estudaram, mas não decifraram esses sons, essa magia.


Como explicar brotar, só em Taperoá: Zito Borborema, Abdias, Fuba, Vital Farias e uma gama de talentos com uma força musical que legitima a expressão euclidiana: antes de tudo um forte. Forte e indestrutível. Parece que a luz solar, aparentemente excessiva, que banha aqueles “carrascais” faz germinar poesia, poetas, cantadores e a música.


Experimente, você que me ler agora, ouvir Zito Borborema cantando um coco: “Coco do Carapiá[2] ou deite, feche os olhos, solte a respiração e ‘viaje’ ouvindo “Sabiá cantador[3]. Caso queiram apreciar, sua obra é rica e diversa. Ouça-a toda, aos poucos, deguste-a ouvindo as chuvas finas, caideiras de julho e agosto; de preferência no frio da Borborema. Nela encontrará o sertão e o Brasil, a sua representação social, cultural e sua natureza.


Pra continuar nas bandas de Taperoá, no afluente do Paraíba: Busque, investigue e escute o “Fifurinfurinfunfá….Forró em Taperoá”, com Abdias e Vital Farias. Veja do que esses homens são capazes. Escute o pandeiro de Fuba.


Taperoá recebeu Ariano. Lá ele curou seus pulmões e viveu o Brasil real, fonte maior de sua obra. Mas Taperoá é caminho de Teixeira, dos Dantas, ou os Dantas de Teixeira, terreiro de Zé Limeira, a “Assombração do Nordeste”, o Hermeto da viola, onde o verso, as rimas se sobrepunham à letra, à idéia. Pra Zé Limeira não havia rima perdida, mesmo que os versos parecessem absurdos e não dissessem coisa com coisa. Aparentemente…..

Teixeira está na crista norte da Borborema, onde se separa a Paraíba do Pernambuco. A chuva divide os estados. Melhor dizendo, o destino tomado pelas águas nas enxurradas separa os estados. Se ao sul, viram águas pernambucanas, desaguando no Pajeú, se ao norte, viram águas paraibanas, desaguando no Taperoá. A poesia e a música, no entanto, une e firma, integra num só canto, numa só cantoria. Se aquele recanto da Paraíba está prenhe de poetas, cantadores, o Pajeú pernambucano então: dos irmãos Batistas (Lourival, Dimas e Otacílio), segue a mesma inundação maravilhosa.


O Pajeú é melodia pura. Se trilhares por aquelas bandas um dia, preste atenção numa placa, à beira da estrada anunciando uma ponte sobre o “Riacho do Navio”. Diz muito, não!? Ali em Carnaíba nasceu Zédantas e o Riacho do Navio. Experimente ouvir os acordes de Gonzaga, ouça a sanfona falando. Ela diz muito sobre o sertão do Pajeú. A letra de Raymundo Granjeiro completa. Ali não há tristeza, apenas saudades. Há, de certa forma a exaltação do sertão. Do clima, da vida sertaneja. Há uma negação da trágica e forçada migração sertaneja, a pura ilusão.


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O Pajeú de Maciel Melo…. “Onde o mestre louro plantou…”

Meu Pajeú (Luiz Gonzaga e Raymundo Granjeiro – 1957)

“Já faz um ano e tanto

Que eu deixei meu Pajeú

Com tanta felicidade

Vim penar aqui no sul

Ai, hum!

Ai meu Deus

O que é que eu vou fazer

Longe do meu Pajeú

Não poderei viver

São Paulo tem muito ouro

Corre pratas pelo chão

O dinheiro corre tanto

Que eu não posso pegar não

Ai, hum!

Ai meu Deus

O que é que eu vou fazer

Longe do meu Pajeú

Não poderei viver

Paulista é gente boa

Mas é de lascar o cano

Eu nascí no Pajeú

Mas só me chamam de baiano

Ai, hum!

Ai meu Deus!

O que eu vou fazer

Longe do meu Pajeú

Não poderei viver

No dia em eu voltar

Vou fazer uma seresta

Vou rezar uma novena

Ao bom Jesus da Fuloresta

Ai meu Deus

O que eu vou fazer

Longe do meu Pajeú

Não poderei viver

Se não puder ir ao Pajeú pernambucano siga outra vereda. Caminhe pelo Cariri Paraibano. De Zé Marcolino, Pinto do Monteiro. Visite o Serrote Agudo, a Cacimba Nova. Caso não consiga, basta escutar a doçura e a força da música de Sandra Belê. Essa já lançou três CD`s, cada um melhor do que o outro. “Nordeste valente”, “Baú de saudades” e “Se incomode não”. Seus reizados, pastoris, cocos, cirandas. Lindo, profundo.


Certa vez um amigo meu catarinense, colecionador de Jackson do Pandeiro. Tem tudo de Jackson. Indagava-me a razão de tanta música, tanta poesia no sertão nordestino. Eu, sem saber o que responder, disse apenas: é a luz. É a luz que temos naquelas bandas. Luz de sobra que ilumina o Brasil de música e poesia…. Terminamos aquela noite degustando uma deliciosa cachaça paraibana e ouvindo Socorro Lyra, lá do Brejo do Cruz, a terra de Zé ramalho, ali, logo depois de Catolé do Rocha, do maravilhoso Chico César. Próximo a Pombal de Leandro Gomes de Barros, “o maior poeta do Brasil”, segundo Drumond. Isso tudo depois de Patos, terra do grande poeta Zé da Luz. É tudo a luz do sertão.


[1] Imbalança – (baião) – Zedantas/ Luiz Gonzaga – RCA; 1952.

[2] Coco do carapiá (Luizito – Otavio Rodriguez Abreu); LP Forró Paraibano; Cantagalo; 1960.

[3] Sabiá cantador (Zito Borborema – Curumba); LP Sabiá Cantador; RN discos, 1983.

2 comments

  • Saulo Passos

    Caro Prof. Jonas Duarte
    Seu texto está simplesmente formidável, entretanto, parece-me que Zé da Luz é um dos três Severinos de Itabaiana e não de Patos. Concorda?

    grato
    Saulo

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